sábado, 26 de maio de 2012

Desajuste

Como conciliar um cotidiano atribulado e sacrificante com realização e motivação para seguir? A rotina diária de transporte público, com muito aperto e longo tempo, consome paulatinamente um pouquinho da alma por vez.

Nem adianta esperarmos o espírito colaborativo, do tipo “unidos na desgraça”, porque me parece utópico quando nos confrontamos com o comportamento da grande maioria. No meu caso, o desafio inexpugnável de todas as manhãs e finais de tarde atende pelo nome de Metrô de São Paulo.

Num arranjo desafiador, de corpos mais do que intimamente aglutinados, temos nossa paciência e educação rotineiramente desafiada. Permanece a impressão de inexistência da contrapartida, de que apenas nós a possuímos e nos dedicamos a usá-la. Surpreende a normalidade na qual a maioria entre no barco, nesse caso no trem, se engaja e adequa às atitudes do status quo.

Minha reflexão termina por concluir no meu desajuste: em meio a tanto fluxo contrário, a tanto esforço para o outro lado, o problema deve ser comigo, eu devo ser o desajustado, com alguma utopia inocente e irrelevante a corromper meu senso de realidade.



Hoje, logo cedo, dia frio e nublado, para combinar com via crucis do caminho até o trabalho, os ares matinais insinuavam não ser um bom dia para sair da cama. Enfrentar o vento cortante e gelado, mesmo que por algumas poucas quadras, testa nossa resistência e força de vontade.

Se ao entrar na estação do Metrô tudo ficasse para trás, estaria muito bom, mas essa não era a cereja do bolo... Depois de inúmeras composições passarem, consegui entrar num pequenino espaço disponível em uma, feliz por alguns centímetros quadrados de conforto.

Sina das sinas, ao toque da campanhia, um intrépido e grosseiro apressadinho se enfiou porta adentro, espremendo todos e todas, fazendo minha cabeça pender de um jeito inimaginável para comportar a entrada do indivíduo no vagão.

Fiquei lá, torto, contorcionista, e meu companheiro de viagem, braço estendido por sobre o povo, como se procedesse da forma mais humana e natural possível. Uma, duas, outra estação e a empáfia do passageiro me causava tamanha revolta que comecei a temer pelos meus atos.



Chegada a estação Sé, estava eu chegando aos meus limites. Nunca fiz, nem faria, confusão alguma, como bom paulistano prefiro seguir meu caminho, desviar dos acidentes e chegar o quanto antes aos meus compromissos.

Naquele dia tudo seria diferente... Mal as portas abriram, o sujeito olhou em minha direção, mudou a expressão e esbravejou:

- Qual o problema?

Respondi, aos berros, sem medir muito as consequências:

- O problema é sua empáfia, sua falta de qualquer indício de altruísmo!

- Empáfia? Altruísmo? ‘Cê é lôco, mano?

Tomado por instantânea sanidade, resolvi deixar passar, mas não sem antes encerrar com alguma máxima:

- A loucura é dádiva para poucos escolhidos! Ignorar é uma...

- Benção? Empá... Empá... Emmn-n… A-a-alt.. Altrrrrruuuuu... A... a... a...



Inesperadamente o cara começou a engasgar, como uma gravação com problemas, num tom estranhíssimo, metálico, meio mecânico. Assustado, me preocupei com a situação do meu interlocutor. O estresse urbano pode causar sérios danos em qualquer um e eu não desejava ser o motivo de uma crise.

Estiquei o braço para acudi-lo e toquei-o no ombro, perguntando se tudo estava bem. Inesperadamente ele estava catatônico, imóvel em sua postura agressiva, com meia palavra a caminho. Ao encostar nele algo se moveu, como uma peça a se desencaixar, e caiu pelo chão com um estridente barulho.

Aturdido, burburinho em volta de nós, mal percebi quando diversos seguranças do Metrô surgiram e acudiram o homem. Uma maca foi providenciada e, antes que pudesse me pronunciar, ele era removido apressadamente, enquanto o tumulto era dispersado, tudo em nome do bom funcionamento do sistema metroviário.

O mais estranho foi eu ter sido completamente esquecido, nem inquirido sobre a ocorrência. Com em qualquer confusão do tipo, num piscar de olhos todos andavam no seu ritmo frenético novamente, acabou a atração e somente eu continuava pensativo, atônito com a repentina disrupção da minha realidade.

Aquela imagem, a tal peça deslocada, os sons vindos da garganta daquele homem, martelavam meus pensamentos, persistiam e incomodavam, apesar da volta à normalidade de todo entorno.



Cheguei à empresa e não pude deixar de relatar o ocorrido. Melhor seria se tivesse ficado calado... Aparentados aos meus companheiros de viagem matutina, meus companheiros de trabalho atendiam ao perfil de incompreensão padrão das pessoas.

Virei piada com minhas afirmações incontestáveis da minha visão. De suspeitas a insinuações, ouvi um pouco de tudo, levando-me a suspeitar seriamente da minha sanidade. Não fosse a palpável realidade experimentada, eu concordaria que aquela pessoa era um ser humano comum, mas algo pairava de muito estranho no ar.

Revisei os fatos, avaliei meus sentimentos, porém meu incômodo só aumentava. Nada de notícias na Internet, ou no site da companhia de trens, nenhum indício de que eu vivenciara a bizarra situação. Também pudera, quem sou eu para virar notícia por algo corriqueiro e banal no tumulto diário de uma grande cidade?

Encanado como sou, a pressão mental foi enorme e insistente o suficiente para me incapacitar ao trabalho naquele instante. Duas horas depois não aguentava mais, decidi voltar para casa, descansar, tentar esquecer. O estresse urbano acabara de produzir nova vítima indefesa.



Retornei para minha casa, meu porto seguro, mas passar o dia sozinho pode enlouquecer alguém. Remoí cada detalhe do evento, recordava o som da peça batendo no chão. Mas que peça? Como alguém tem uma peça? Qual a origem da voz estranha, da disfluência verbal? Acaso ele seria alguém com implante, com alguma deficiência?

Cheguei a considerar alguma brincadeira de deuses, no estilo grego mesmo, apesar de nunca julgá-los muito verossímeis. De repente é assim, recebemos a revelação de nossa condição e encaremos nossas não crenças serem derrubadas, todas de uma vez.

Preocupei-me com minhas reações e com meus instintos. E se a loucura me abatesse e eu fosse levado a tentar contra mim mesmo? Acreditava piamente no sentido de auto-preservação, mas meus dogmas estavam me servindo pouco até aquele momento.

Procurei dormir, esperar nos braços de Orfeu pela chegada da minha esposa. Talvez uma conversa com ela, pessoa centrada, pudesse colocar novamente meus pés no chão, ajudar-me num rumo para o entendimento, ou ao menos para o apaziguamento da minha inconstância.



Horas longas se passaram, um sono inquieto, até eu poder ouvir o barulho das chaves na porta. Alívio e anseio pelo final da espera, afinal chegava a hora de encontrar alguma compreensão, no mínimo um afago consolador.

Cumprimentos rápidos, um olhar de espanto pela minha presença antecipada, e comecei a desaguar um relato quase alucinado dos eventos. Estática, ela me ouviu atentamente, com algumas poucas expressões de interlocução.

- Você não deveria se preocupar tanto com as coisas, encanar menos.

- Se fosse tão fácil, eu ainda estaria trabalhando.

- Fico realmente preocupada com suas menções e questionamentos relativos à sua auto-preservação... Onde já se viu isso? Seus desajustes com o cotidiano, seu descontentamento com a realidade, acho que poderia procurar ajuda.

- Sinceramente, pela primeira vez considero seriamente sua sugestão de terapia. A psicóloga, sua conhecida, será que pode me atender emergencialmente?

- Não custa procurá-la, tenho liberdade para ligar e marcar alguma coisa...

- O quanto antes, não sei o quanto aguento da minha ansiedade!



No dia seguinte, consulta marcada na noite anterior, fui ao endereço da tal profissional. Poderia ser bom, poderia valer para tantas outras angústias diárias... Tanta gente faz...

Cheguei ao local, dirigi-me a recepção e estranhei a reação da secretária quando me identifiquei. Um misto de prontidão e espanto com a minha presença. Tínhamos marcado com a psicóloga diretamente, mas parecia que a auxiliar conhecia todo o histórico, todo o ocorrido, além do meu perfil. Eu devia estar meio abalado mesmo...

Esperar na sala, mesmo por alguns rapidíssimos instantes, trouxe um pouco do bolo na garganta do dia anterior. Silêncio forçado, TV muda em algum programa de variedades matinal, expectativa alta além de padrões suportáveis.

A porta do consultório se abriu e presenciei a cena de certo encerramento forçado. Sugeria que minha visita havia forçado seu término prematuro. Fui convidado a entrar e me sentar.



Decoração aconchegante, ambiente calmo e envolvente, já me senti melhor somente de entrar e sentar.

- Bom dia! Sou a Marisa, psicóloga amiga de sua esposa. Dias tensos, não?

- Pois é, já adiantamos algo por telefone, só que a bastante por relatar ainda...

E fui destilando os detalhes daquelas pouco mais de 24 horas anteriores, com todos as nuances e reflexões anteriores. Não pude deixar de mencionar meus temores com a loucura, sentimentos de preservação, ou não, relações pessoais com a massa, etc.

Ela ouviu atentamente e solenemente se pronunciou:

- Bem, acho que não há muitas alternativas. Chegamos a um limite de condições.

- Como? Você pretende piorar minha situação?

- Calma, você logo entenderá. Acompanhe-me, por favor.



Ao toque de um botão na sua mesa, uma porta oculta se abriu, estava dissimulada pela estante de livros. Uma luz branca, bem fria, vazava lá de dentro. A psicóloga se encaminhou para tal passagem, me convidando a segui-la.

Não imaginava o mundo oculto atrás daquela porta. Laboratórios dignos de filmes, com pessoas e mais pessoas trabalhando, todos com ares científicos. Fiquei a pensar como não percebi as dimensões do lugar quando cheguei. Na verdade, acho que era imperceptível, feito para não aparentar seu interior.

Tal complexo de salas se estendia por um bom espaço. Por onde passávamos percebia o olhar de curiosidade sobre mim, um tanto similares ao da secretária lá na recepção. Alguns cochichos também podiam ser percebidos, quando o som de nossos passos permitia.

Paramos em um recinto ao fundo, com ares de sala de reunião. Minha anfitriã posicionou alguns aparelhos, projetores à primeira vista, e pediu que eu acompanhasse atentamente.



Imagem no painel, sozinho na sala, permanecia ali, pois sentia ser a única alternativa. Surge um rosto de um senhor grisalho, roupas alvíssimas, como das pessoas naquele lugar. E o mundo deu sua guinada:

- Olá SH327! Bem-vindo ao Complexo Recriação!

(SH327? Eu? Será isso mesmo?)

- Certamente você está se perguntando dos motivos, da sua identidade, dentre outras tantas questões...

- Seremos breves, com o máximo de informação necessária e você terá posteriormente todo o atendimento que desejar. Há muito a humanidade sofreu o ataque de uma pandemia inexplicável. Não sabemos se consequência da ação do homem, ou ira divina, mas poucos restaram.

- Aqueles poucos tentaram resgatar a espécie humana, mas também foram se extinguindo, um a um. Num último esforço, este projeto foi recriado para tentar manter a existência do ser humano.

- Com toda tecnologia existente em seu tempo, criaram e programaram autômatos responsáveis por dar continuidade à suas pesquisas, na busca de um DNA imune. Sou parte destes autômatos e posso lhe garantir que tivemos sucesso nessa empreitada.

- Porém, os indivíduos criados desse modo apresentaram problemas de adaptação à realidade solitária existente. Acabavam extintos ou se auto-extinguindo, fazendo-nos procurar uma alternativa.

- Decidimos construir um ambiente aprazível que permitisse sua continuidade, simulado com outros tantos autômatos na mais perfeita reprodução da civilização humana. Você é o primeiro, e único, a chegar até aos 30 anos ileso neste novo ambiente, mas alguma evento deve tê-lo trazido aqui.

- Havíamos preparado este último subterfúgio para tentar acudi-lo e garantir a continuidade do nosso projeto. Tentar contornar e reprojetar, se necessário...



Decidi não esperar o fim das explicações. Ninguém também tentou me impedir de deixar o local. As revelações até o momento foram suficientes para aplacar minhas angústias, por incrível que pareça. Em poucos instantes, reviravoltas mil, mas reinou uma paz repentina com a consciência da verdade.

Caminhei para casa sem muito pensar, até satisfeito e cheio de planos. O mundo parecia bem igual, apesar de eu conhecer seus meandros, um pouco mais de seus segredos. Deus definitivamente não estava apenas brincando.

Estranhamente sentia-me agraciado com tanto destinado exclusivamente para mim. É bem certo que poderia ter alguns pedidos atendidos, porém resolvi não arriscar... Vai que alguém ficasse desagradado e resolvesse encerrar alguma outra coisa.

Cumprimentei balconistas, atendentes, porteiros e nada havia mudado. Nem tinha a sensação de algum olhar estranho ou oculto. O céu ganhará um azul inesquecível e dormi como nunca naquela noite.



Outra manhã começara, os desafios estavam lá, os apertos os mesmos, a labuta a me esperar. No entanto, o inverno já nem incomodava. A curiosidade de como tudo aquilo era possível se mostrava mais incômoda, mas eu podia conviver com ela, sem precisar resolvê-la.

Cheguei à estação para encontrá-la daquele jeito, abarrotada, como toda dia da semana, em pleno pico. Ao menos poderia receber um bônus, uma folguinha de vez em quando, para facilitar as coisas. Fazer o quê, né? Deve ter que ser assim, para minha continuidade.

Malditos robôs!

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Embate

Sempre desejamos ver o Brasil no rol dos principais países do mundo, mas provavelmente procurávamos o bônus, sem nunca pensar no ônus. E que ônus...

Desde do começo do século XXI as guerras religiosas vêm imperando, periodicamente eclodindo, pequenos eventos de grandes proporções. Nunca mais vimos uma guerra mundial, deflagrada em todos os cantos, mas em todos os cantos o conflito ideológico é constante.

Ao Brasil coube contribuir com a manutenção da paz mundial, seja lá o que isso significasse aos poderosos do mundo. Passamos a intervir e participar ativamente nestes conflitos, aliados que somos do grande conselho humano.

Da minha parte eu vivia sossegado, já me considerava longe da idade de convocação. Quase cinco décadas deste século, eu já com a minha quarta década completada, estava muito distante do perfil de um cadete. Ledo engano...

A evolução tecnológica transformou nossos combates e, sendo assim, minha senioridade em engenharia de software era de grande valia. Pior para mim, já que a melhor alternativa é levar a campo os cientistas computacionais para manter ativa a gigantesca máquina tecnológica de batalha.

Tudo é software e rede, executado por máquinas combatentes, com mais ou menos inteligência, a subjugar exércitos de carne e osso, sem os recursos necessários para fazer frente ao dinheiro das Nações Unidas, a não ser por sua coragem e desprendimento ou, na opinião de alguns, loucura mítica.

Meu consolo é estar voltando, após longos quatro anos no front. Normalmente somos levados por não mais que dois anos, mas sabemos como são persistentes esses ideólogos terroristas. Entre uma dificuldade e outra, entre um novo desafio a solucionar e outro, minha dispensa foi sendo adiada. Agora definitivamente acabou, ao menos para mim.



É estranho chegar em casa depois de tanto tempo. Sem contato com minha família, por questões de segurança. Tanta tecnologia maravilhosa e a única garantia de segurança total é a ausência dessa mesma maravilha.

Vivi nos últimos anos um mundo com acesso aos mais recentes recursos computacionais existentes, mas não podia sequer envia um e-mail à minha mãe. Mesmo a minha volta é desconhecida por ela, afinal nada é comunicado ao mundo civil.

Não reconheço o porteiro do prédio, deve ter sido trocado neste tempo... Por sorte algumas coisas nunca mudam, caminho como íntimo do local, avanço para o portão e ele se abre. A velha maneira de distinguir os moradores dos estranhos através do comportamento.

Chegando à porta a expectativa é grande, mal consigo acertar a chave. Para piorar, ela não vira, parece ter tido o segredo trocado. Toco a campanhia. Que remédio, não? Antes não tivesse tocado, ou nem tivesse chegado até aqui. Quem abre é uma pessoa totalmente estranha, assim como eu também o sou para ela.

Confiro o andar, a porta, penso até na cidade, o país, mas tudo confere. É daqueles momentos que nos fazem questionar a própria sanidade... Conferências feitas, tudo confirmado, resta-nos apenas o questionamento.



- Desculpe-me, mas não mora aqui a Sra. Maria Moreira?

- Caro rapaz, sou a moradora e não conheço essa senhora.

- Há quanto tempo a senhora reside neste apartamento?

- Já vivo aqui há dois anos, desde que meu marido faleceu.

- A senhora comprou ou alugou de quem?

- Comprei-o do governo, meu filho, num programa de moradia para a terceira idade. Por sinal, quando cheguei havia uma misteriosa correspondência na portaria, endereçada a Eduardo Moreira. Seria você?



Desci à portaria, depois de me despedir e desculpar a tal senhora. Sentia-me como um personagem de tragédia grega, com os deuses a brincar com essa pequenina formiguinha. Quem sabe o desconhecido porteiro conhecia algo para me alentar...

Identidades apresentadas, ele me entregou a tal carta, por sinal com marcas do tempo que já se passara. Quem diria, num mundo de mensagens digitais, instantâneas ou não, totalmente conectado, eu ainda recebo mensagens em papel e envelope.

O fatídico objeto tinha logo do governo e era endereçado a mim. Se foram eles mesmos que me mandaram para outro canto do mundo, por que não me localizaram lá? Falta de controle, organização ou excesso de segurança?

A carta dizia que minha mãe sofrera distúrbios mentais, não tinha mais condições de ficar sozinha. O serviço social tomou conta dela, liquidou seus bens e a instalou em uma clínica para tratamento de idosos senis. Endereço informado, imediatamente me dirigi para lá.



Ficava a tal clínica em São Paulo mesmo, na região de Higienópolis. Espero que o governo tenha gerido muito bem os recursos da minha mãe, afinal os custos de um internação para aqueles lados devem ser bem altos.

Cheguei ao local angustiado, ansioso por saber o que exatamente se passava. Não bastasse o peso dos acontecimentos da guerra, eu começava a perceber que suas consequências não ficariam apenas por aquelas terras distantes.

Encontrei o local, reluzente, um prédio suntuoso, destes das propagandas para aposentados endinheirados. Caminhei até a recepção e fui direcionado à seção de visitas de familiares.

Aguardei alguns minutos, sentidos como a eternidade, até ser chamado por uma simpática atendente. Fui informado que eu havia sido considerado morto em guerra e minha mãe acolhida ali sob os cuidados do governo.

Se fui considerado morto, por que diabos havia sido deixada uma correspondência endereçada a mim? Ás vezes são tantas as trapalhadas governamentais que me questiono como conseguimos chegar aos estado atual.

Felizmente meu chip de identificação e a rápida assinatura genética não deixaram dúvidas sobre minha identidade. Só lhes restavam permitir que eu encontrasse minha progenitora. Assim foi feito. Fui levado para as áreas internas da instituição.



Era um jardim como dos filmes, muito bonito e aconchegante, um tanto bucólico, mas um com uma paz incontestável. Senhores e senhoras aqui e ali, em conversas calmas e felizes, um verdadeiro éden da idade avançada.

Em meio a tantas cabecinhas brancas, pude reconhecer seus traços envelhecidos. O olhar um tanto aéreo, mas o mesmo sorriso inesquecivelmente gentil. Ao seu lado, alguém mais jovem com quem conversava. Certamente não era um paciente, mas uma visita também.

Ao me aproximar mais, notei certa familiaridade com os traços daquele acompanhante. Essas coisas de traços da família, desenho da cabeça, contornos dos cabelos. Era comum, ao encontrarmos alguém assim, dizermos: deve ser um Moreira. Seria algum primo?

Saudei-os ao longe e, no momento que aquele homem se virou, fiquei atônito! Era eu! Alguns poucos anos mais jovens, eu podia reconhecer, mas era como vivenciar a fábula de Scrooge, ou algo parecido. Ele me parecia um tanto surpreso também e minha falta de ação fez com que ele se dirigisse até mim.



- Quem, quem é você? - primeiro ato meu, como se eu tivesse algum controle.

- Unidade de cuidados e acompanhamento EM01, senhor.

- O que você é ou faz aqui?

- Fui encarregado pelo governo para tomar conta de sua mãe. Posso reconhecê-lo, afinal sua pessoa foi a matriz para minha geração.

- Como assim?

- Quando a demência atingiu sua mãe, ela apenas parecia se referir a você. Perceberam que você seria a única pessoa capaz de conduzi-la e cuidá-la. A opção mais humana era mantê-la em contato com seu filho.

- Mas você não sou eu, não é o filho dela. É um autômato feito minha imagem e semelhança para enganá-la.

- Senhor, desculpe, mas no estado mental dela eu sou tudo que precisou nestes últimos anos. Posso garantir que vive feliz e atendida, como qualquer pessoa poderia desejar.

- Você não entendeu. Eu não quero minha mãe pajeada por um monte de porcas e parafusos, sem ofensas. Minha ausência foi certamente um grande prejuízo para ela, mas tenho condições e quero recuperar tudo que puder.

- O senhor não me ofende, mas posso garantir que fui programado e poderei garantir toda a atenção necessária até seus últimos dias.

- Isso é um absurdo!

- Meu filho, quem é esse rapaz com você? - era ela inquieta por nos ver em acalorada conversa.

Sai, deixando-a com ele, mas seria por pouco tempo. A administração daria conta de resolver essa questão absurda. No caminho pelo jardim, tive a estranha sensação que ele me seguia com o olhar.



Fomos em um grupo: o diretor-médico, um enfermeiro e eu. Na verdade, o enfermeiro era mais um técnico de hardware do que um profissional da saúde. Ele controlava os códigos de manutenção daqueles robôs.

Ao nos aproximarmos dos dois, subitamente minha versão robótica se levantou de maneira tempestuosa. Olhou-nos espantado, correu em disparada pelo jardim e, num salto mais que olímpico, sobrepujou o muro da instituição.

Corri em direção a minha mãe, para acudi-la, enquanto ouvia o diretor demandar uma série de ordens e alertas. Parecia que eles também foram surpreendidos por aquela reação, tanto quanto eu.

O ocorrido sugeria que ele havia pressentido nosso intuito. Eu não imaginava que estes cuidados básicos, de controles e reação destas máquinas, não haviam sido tomados por seus criadores. Imagina se nossas máquinas guerreiras pudessem também se descontrolar assim. Isso estava me cheirando a mais descuidos do nosso governo...



- Mãe?

- Meu filho? Que estranho, parece que você foi numa direção e voltou noutra.

- Está tudo bem, não sai daqui.

- Curioso, há algo diferente em você.

- Impressão sua, deve ser a luz de hoje.

- Com certeza. Já não tenho mais a mesma cabeça de antes. Se não fosse você comigo...

- Em breve, vou levá-la para casa, para cuidar melhor da senhora.

- Casa? Outra? Você sempre me cuidou tão bem aqui. Se não fosse você...

- Iremos para um lugar melhor ainda, então.

- Ah, meu filho, só você mesmo para estar sempre ao meu lado, cuidando de mim durante todos esses meus anos de invalidez. É por isso que te amo.

domingo, 28 de março de 2010

Tempo

Caro Futuro,

Há quanto tempo, não é?

Pois eu aqui do meu tempo fico a pensar: quando será que conseguirei mais tempo? Quando as inúmeras programações dos meus dias caberão neles?

Prometeram-nos maravilhas tecnológicas para melhorar nossas vidas, mudaram-se os costumes para buscarmos um cotidiano melhor, com mais qualidade de vida.

Estaremos aí pelo seu tempo com mais tempo do que já tivemos? Pelo andar da carruagem, chegaremos por aí ainda mais ocupados, mais desejosos de alguns minutos a mais.

Em dias de hoje, acordo no sábado, começo meu delicioso café da manhã em família e termino, quando menos espero, no jantar dominical, quase a caminho da cama.

Não que eu desperdice meu tempo. Longe de mim! Realizamos coisas sem conta, curtindo e vivendo nossos dias muito bem. Apenas parece que qualquer espaço de tempo é exíguo, que há um caráter de urgência no desenrolar do dia a dia.

Minhas referências são os idílicos finais de semana da minha infância. A companhia de meu pai, os cuidados da minha mãe, soavam eternos, longos, um imenso período de recesso da rotina diária, deixando um delicioso sabor de "que bom" durante o começo da semana seguinte.

Há quem culpe a Internet e seus semelhantes. Até parece... Das minhas principais percepções está a total indisponibilidade em escrever nestes recantos, por mais anseios que eu tenha. Fiquei por esses meses sem me comunicar com você, te deixando mais longe, apesar de sempre estar chegando.

Desconfio que os grandes vilões são os desejos modernos, as faltas de ilusão ampliadas dos tempos atuais, um certo naturalismo presente em todos. Algo da magia do passado se perdeu e anda fazendo falta. Reencontramos ela por aí?

Acredito que conseguiremos reencontrar, afinal tantos a almejam, mesmo sem saber, mesmo indiretamente. Faremos dela nossa herança, para nossos filhos, nossos netos. Descobriremos se deu certo quando nos encontrarmos.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Contato

Querido Futuro,

Demorei certo tempo para tomar a iniciativa, mas venho pedir licença para lhe falar com liberdade, sem mais me preocupar com o contexto ou meias palavras.

Preciso lhe falar, contar minhas expectativas e fazer perguntas, cobranças, "trocar" umas ideias. Possivelmente suas respostas tardarão, já serão desnecessárias. Pouco importa, pois você terá sido inquirido...

Talvez seja efeito da idade, ou a maturidade inerente às refelxões do percurso da vida, de um jeito bem humano, possivelmente um pouco preocupado, mas indubitavelmente sereno.

Em outros tempos, bem lá na infância, os sonhos pintavam paisagens, quadros de intangíveis detalhes, repletos de desejos e preenchidos de incertezas. Questão de personalidade, a se perder em algumas angústias e ansiedades, que somente o tempo solucionaria.

Um bom tempo já se passou e pude confrontar os projetos com os resultados. Quantas promessas se esvairam em esforços sem efeito, ou quantas surpresas se materializaram em agradáveis momentos de júbilo, acaso de evolução surpreendente.

Eu sei, acredito já ter aprendido, a vida é assim mesmo, guiada pela indefinição. Quanta sabedoria do Heisenberg... Seu princípio guia a natureza, a existência, permeia o Universo para onde quer que olhemos! A nós resta a aceitação.

De qualquer forma, através de minhas mensagens, procurarei entender um pouco mais meu relacionamento com você (desculpe a intimidade...), quem sabe semear lembretes para um discussão em outros momentos.

A distância a nos separar é imensa, possivelmente nunca nos encontraremos... Isso não é motivo para abandonar a vontade de me corresponder com você. Os ecos destas emissões alcançarão meus objetivos, colaborarão com meu "eu", aquele contemporâneo seu.